Encontro Online Cultura
Livre do Sul: a produção cultural comunitária para a construção do comum
Beatriz Cintra Martins[1]
Universidade
de São Paulo, Brasil
Leonardo Feltrin Foletto[2]
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Brasil
leofoletto@gmail.com
Carlos Eduardo
Falcão Luna[3]
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Resumo.
Neste
artigo pretendemos sistematizar a experiência de articulação em rede para o
Encontro de Cultura Livre do Sul, a partir da construção coletiva do primeiro
encontro, inteiramente virtual, realizado em 2018. Como método para nossa
reflexão, empregamos a análise de conteúdo das mesas temáticas, registradas em
vídeos, e a observação participante. Em nossa abordagem teórica, trazemos o
debate em torno da construção dos comuns e a problematização do termo livre no
atual contexto político e social da América Latina, buscando articulá-lo com o
conceito de produção cultural comunitária. Em seguida, apresentamos um resumo
do processo de construção do encontro e também dos temas debatidos no evento,
registrando ainda o planejamento para sua continuidade. Por fim, avaliamos que
o encontro favoreceu o fortalecimento do movimento cultura livre no Sul Global,
que se apresenta como uma alternativa para a construção de bens comuns da
cultura a partir das diferenças e peculiaridades desses territórios e contribui
ainda para mitigar suas desigualdades.
Palavras-chave:
cultura livre / produção cultural comunitária / comum / Sul Global / tecnologias
livres
Encuentro Online Cultura
Libre del Sur: la producción cultural comunitaria para la construcción del
procomún
Resumen. En
este artículo, pretendemos sistematizar la experiencia de trabajo en red para
el Encuentro de Cultura Libre del Sur, basada en la construcción colectiva de
la primera reunión, completamente virtual, celebrada en 2018. Como método para
nuestra reflexión, utilizamos el análisis de contenido de los grupos temáticos,
grabado en videos, y la observación participante. En nuestro enfoque teórico,
traemos el debate en torno a la construcción de bienes comunes y la
problematización del término libre en el contexto político y social actual de
América Latina, buscando articularlo con el concepto de producción cultural
comunitaria. Luego presentamos un resumen del proceso de construcción de la
reunión y también de los temas discutidos en el evento, también registrando la
planificación para su continuidad. Finalmente, creemos que la reunión favoreció
el fortalecimiento del movimiento de cultura libre en el Sur Global, que se
presenta como una alternativa para la construcción de bienes culturales comunes
basados en las diferencias y peculiaridades de estos territorios y contribuye
a mitigar sus desigualdades.
Palabras
clave: cultura libre / producción cultural comunitaria / procomún
/ Sur Global / tecnologías libres
Global
South Free Culture Meeting: the community cultural production in the commons’
construction
Abstract. In
this article, we intend to systematize the networking experience for the Global
South Free Culture Meeting, based on the collective construction of the first
meeting, entirely virtual, held in 2018. As a method for our reflection, we
used the content analysis of the thematic tables, recorded in videos, and
participant observation. In our theoretical approach, we bring the debate
around the construction of commons and the problematization of the free term in
the current political and social context of Latin America, seeking to
articulate it with the concept of community cultural production. Then, we
present a summary of the process of construction of the Meeting and also of the
topics discussed at the event, recording the planning for its continuity.
Finally, we believe that the meeting favored the strengthening of the free
culture movement in the Global South, which presents itself as an alternative
for the construction of common cultural assets based on the differences and
peculiarities of these territories and contributes to mitigate their
inequalities.
Keywords:
free
culture / community cultural production / commons / Global South / free
technologies
Introdução
A articulação em rede
entre coletivos que atuam numa mesma área, seja de atuação profissional, de militância
ou mesmo de aproximação espacial, pode ser considerada como um dos âmbitos
principais para a troca de conhecimentos, circulação de indivíduos, grupos e
metodologias, entre outras realizações conjuntas. No contexto do sul global
esse tipo de movimentação se faz ainda mais necessária, a partir do
reconhecimento da distribuição desigual dos recursos materiais e simbólicos e
da divisão internacional do trabalho, que relega estes países,
substancialmente, a exportadores de matéria-prima e importadores de produtos de
alto valor agregado, o que se reflete em diversas formas de desigualdades,
entre países, entre regiões e mesmo dentro das próprias regiões.
Portanto, a atuação em rede tende a mitigar essas
desigualdades ao criar as condições para a realização de ações através de
complementaridades entre os grupos que se articulam. O caso do Encontro de
Cultura Livre do Sul Global parece ser exemplar deste tipo de articulação. O
encontro, que teve sua primeira edição realizada em dezembro de 2018, foi organizado
por coletivos da Argentina, Brasil, Espanha e Uruguai e reuniu organizações e
pessoas interessadas em acervos culturais, direitos na rede, comunicação e
educação, entre outros temas, no âmbito da comunicação livre e da produção
comunitária.
Contudo, as organizações que participaram do encontro
permaneceram em contato, continuando a realizar reuniões virtuais
periodicamente, a trocar experiências, a divulgar as ações de cada um em seu
território e trabalhar na construção da segunda edição do encontro, para a qual
houve a oportunidade de participação no programa Mozilla Open Leaders[4].
Além de proporcionar a articulação de diversos grupos e
ativistas, o encontro procurou abordar as especificidades da cultura livre no
sul global em relação ao norte. Nesse sentido, a questão de fundo dos debates
promovidos não foi apenas sobre as liberdades de usos e produção de tecnologias
livres e sobre a livre circulação da cultura e do conhecimento, mas
especialmente para que e para quem são direcionadas essas tecnologias e esses
bens. Outro aspecto relevante nesta abordagem foi o diálogo da cultura digital
com as culturas populares locais, que tradicionalmente já operam num regime de
livre circulação, além das culturas periféricas, afeitas ao compartilhamento
comunitário e solidário.
Assim,
para pensarmos o movimento cultura livre do sul global e refletirmos sobre os
resultados desse encontro, precisamos ir além das referências mais conhecidas
sobre o tema (Lessig, 2005) e buscar uma construção teórica que possa estar
mais próxima desses territórios marcados por precariedade e desigualdade. A fim
de dar mais densidade ao debate, buscamos articulá-lo com o conceito de comum (Dardot
& Laval, 2018), apoiados em alguns autores que já vêm apontando os limites
das primeiras abordagens sobre cultura livre em dar conta da complexidade das
realidades políticas e econômicas contemporâneas (Pasquinelli, 2012; Kleiner,
2010).
Este artigo, além de sistematizar os processos para a
realização do encontro, pretende preservar a memória da articulação, com
potencial de servir de documentação para dinâmicas semelhantes, teve como
objetivo discutir concepções teóricas em torno da construção de comuns e da disputa em torno do termo livre pronunciado no próprio título do
evento. As aproximações com o conceito de produção cultural comunitária também
estão explicitadas o, ainda que este conceito esteja em construção e que este
espaço seja também um momento de abertura às contribuições em torno deste
ferramental teórico.
Portanto, buscamos construir um esforço do particular
para o geral, no sentido de debater as articulações em rede para a produção
cultural na escala regional a partir de aspectos sociais e comunicacionais no
contexto do sul global.
Material e método
O material coletado para
a construção deste artigo foi extraído da nossa participação nos processos de
organização, realização e articulações posteriores do Encontro de Cultura Livre
do Sul Global. O fato de as mesas do encontro estarem disponíveis na internet,
assim como os relatos das reuniões periódicas do coletivo facilitou que se
retomasse o debate das mesas. A partir desta análise de conteúdo buscamos
refletir então sobre as possibilidades de debate teórico em torno do fenômeno.
A realização do encontro produziu uma gama de material
suficiente para que se fizesse uma pesquisa baseada no método da análise de
conteúdo (Dione & Laville, 1999, pp. 214-223), além da própria observação
participante, que Pedro Demo classifica como “não apenas o envolvimento
temporal do pesquisador, mas o seu pertencimento e vivência da realidade
pesquisada, sem olhar externo, mas mantendo o olhar analítico inerente a sua
pesquisa” (Demo, 2008, p.18). A escolha por este método foi propiciada pela
participação dos autores na produção do evento como um todo e na participação
como mediadores em algumas das mesas. Contudo, concomitantemente a organização
do evento, a reflexão sobre as concepções teóricas que dialogaram com o tema do
evento, e ainda a similaridade e diferenças com outras formas de articulação em
rede, fizeram com que, ao mesmo tempo, os autores se preocupassem com as
questões empíricas e também com as formulações teóricas em torno do processo,
com o intuito de sistematizá-lo em um segundo momento, como tivemos a
oportunidade de concretizar nesta publicação.
O fato de as realizações se darem em torno de um comum
consentido entre os coletivos participantes suscitou reflexões do que seriam
bens e conhecimentos comuns e quais as concepções teóricas que os sustentam.
Nossa análise busca suscitar também a problematização em torno do termo livre,
que está em disputa entre as perspectivas da liberdade de ação, de reflexão e
criação em grupo (liberdades coletivas) e a perspectiva do liberalismo
econômico que em geral remete a liberdades individuais.
No âmbito da comunicação social essas tensões se
complexificam a partir da confusão semântica que os usos indiscriminados do
termo “livre” podem suscitar, a partir das diversas dinâmicas revigoradas por
um constante fluxo de inovações comunicacionais e de mobilização das
informações circulantes, além das características estéticas que estas dinâmicas
produzem.
A opção pelo conceito de produção cultural comunitária
visa operar com uma noção que retrata aspectos das produções culturais
praticadas à parte dos mercados mainstream
e de nicho, e que pode abarcar a reflexão social em torno dos processos
comunicacionais. Passemos então para a caracterização do objeto de estudo com o
intento de detalhar os processos que introduzimos até aqui.
O senso de liberdade e a construção dos comuns
A ideia da cultura livre
nasce inspirada pelo movimento do software
livre, pelos grupos contraculturais anticopyright
e pela ideia de copyleft (Torres,
2019), que mudou as regras do que se produz, distribui e se pensa sobre software na década de 1980. No final dos
anos 1990 e início dos 2000, a cultura livre surge como um movimento de
resistência ao regime de direito autoral vigente, que rege a privatização do
conhecimento e da informação (Rowan, 2016). O Creative Commons, conjunto de licenças baseadas no copyleft e
também uma organização internacional que as gerencia, surge em 2001 e se torna
um ator importante ao trazer mais autonomia aos autores sobre suas próprias
obras, sendo uma das iniciativas que busca enfrentar o status quo do copyright, propondo uma atualização das leis relativas à
propriedade intelectual a fim de adequá-las às mudanças trazidas pela
tecnologia digital e pelas redes de comunicação (Baixacultura, 2017).
Em meados da década de 2000, o movimento cultura livre
passa a se tornar ainda mais heterogêneo, articulando diversas iniciativas,
projetos, coletivos e modos de fazer e agir que se transformaram de acordo com
as mudanças das tecnologias digitais e na internet. O software livre e as licenças livres como as do Creative Commons continuam como aspectos centrais na discussão do
tema, mas tópicos como produção de conhecimento livre, a democratização da
mídia (“mídia livre”), os recursos educacionais abertos (REA), os dados abertos
e práticas em prol da transparência ligadas à cultura hacker[5], expressões
artísticas em torno da recriação e do remix,
as defesas da neutralidade da rede e da privacidade na rede, as políticas
públicas de cultura de Estado (em especial, a partir dos Pontos de Cultura no
Brasil; Rowan, 2016[6])
e a economia colaborativa, entre outros, se tornam assuntos emergentes dentro
do movimento (Baixacultura, 2017).
O
debate sobre o comum
Na década seguinte, a
proposta do comum (procomún, em
espanhol; commons, em inglês) ganha
força na cultura livre como propulsora de modelos organizativos mais justos,
num diálogo com a economia solidária e o cooperativismo, e ganha espaço nos
laboratórios de inovação cidadã, iniciativas que surgem na Ibero-América a
partir de 2012, fomentadas pela SEGIB (Secretaría
General Iberoamericana[7]).
No
âmbito da cultura digital, uma importante referência na discussão sobre o comum
é o trabalho de Benkler (2006), que apresenta o conceito de commons como um tipo particular de
arranjo institucional no qual não há uso exclusivo e cuja gestão é feita pela própria
comunidade. Para este autor, commons devem significar, antes de tudo,
liberdade. Assim, em sua opinião, as liberdades individuais, a democracia e a
inovação têm a ganhar com a mais ampla circulação dos bens intelectuais que
possibilite a maior criatividade e produção colaborativa livre entre pares
(Commons Based Peer Production). Seu pensamento se alinha ao debate sobre o
comum do ponto de vista liberal, cujo marco é o artigo “A tragédia dos comuns”,
de Hardin (1968), que analisando o uso comum de um pasto aberto por diferentes
rebanhos, argumenta que é preciso haver gestão pública ou privada dos recursos
comuns, caso contrário inevitavelmente ocorrerá sua depauperação.
Mais
tarde, Ostrom (1990) refuta esse argumento, defendendo a autogestão como a estratégia
mais eficiente. Em seus estudos sobre casos de governança de bens comuns em
comunidades cooperativas como, por exemplo, o manejo da pastagem no Japão e na
Suíça e os sistemas de irrigação em comunidades das Filipinas, a autora
identificou práticas e critérios que favoreceram sua sustentabilidade. Seu
trabalho impulsionou o florescimento de pesquisas em várias áreas do
conhecimento sobre a sustentabilidade dos recursos comuns[8], que não
são privados nem públicos, mas partilhados por todos.
Atualmente,
a discussão sobre o comum vem abrangendo cada vez mais temas pois na medida em
que o capital privado avança sobre todos os tipos de bens, muitas vezes com a
anuência do poder público, mais esse conceito tem sido empregado para
representar o contraponto daquilo que deve ser preservado: a floresta, o rio
(bens naturais); a cidade (bens urbanos); o conhecimento, a cultura (bens
intelectuais) etc. Não cabe neste artigo uma apresentação mais aprofundada de
toda a complexidade desse debate, mas vale destacar o trabalho de alguns
autores que podem dialogar com o tema do movimento cultura livre.
Em um
primeiro aspecto, ressaltamos a pontuação crítica feita pelo italiano Matteo
Pasquinelli (2008) ao apontar que a acepção de comum trazida por Benkler seria
um tanto etérea, pois não considera que os bens imateriais estão
intrinsecamente conectados à matéria, às máquinas e aos corpos que o produzem.
O comum, argumenta, só pode ser compreendido corretamente na medida em que
sejam levadas em conta todas as forças físicas envolvidas em sua produção,
assim como as contradições do sistema econômico. Como um contraponto prático à
visão liberal de comum representada por Benkler, Pasquinelli (2008) propõe uma
noção tática de comum autônomo (autonomous
commons), que pode ser esquematizada em quatro pontos:
1) allows not only passive and personal consumption but a productive use of common stock – implying commercial use by single workers; 2) questions the role and complicity of the commons within the global economy and places common stock out of the exploitation of large companies; 3) is aware of the asymmetry between immaterial and material commons and the impact of immaterial accumulation on material production (for instance IBM utilizing Linux); 4) considers the commons as an hybrid space that must be dynamically constructed and dynamically defended. (Pasquinelli, 2008, pp. 80-81)[9].
De
outro ponto de vista, Dardot & Laval (2018) contribuem para aproximar o
conceito de comum da luta política. Estes autores rejeitam a concepção
essencialista do conceito e o inserem como princípio basilar para a construção
de práticas sociais: “O
comum é o princípio político a partir do qual devemos construir comuns e ao
qual devemos nos reportar para preservá-los, ampliá-los e lhes dar vida” (Dardot
& Laval, 2018, p. 53). Para eles, portanto, o comum é menos um recurso
compartilhado e mais uma co-atividade com vistas a geração de novas formas de
luta e de institucionalidades alternativas que apontem para um futuro para além
das relações capitalistas de mercado.
Se, por um lado, Pasquinelli chama a atenção para
as relações de poder envolvidas naquilo que à primeira vista pode parecer apenas
imaterial, Dardot & Laval pensam o comum como o próprio processo de luta
contra a desigualdade e de construção coletiva de alternativas. Duas
perspectivas que dialogam diretamente com a precariedade presente nos
territórios do Sul Global e ajudam a pensar em formas de resistência do
movimento cultura livre nesse contexto.
Críticas à cultura livre
De fato, assim como o conceito de comum, o termo livre
também se encontra em disputa por setores ideologicamente opostos na sociedade.
A visão dada ao movimento Cultura Livre por Lessig
(2005), que se tornou mais difundida, e especialmente as licenças Creative Commons, criadas por ele e
outros colaboradores, receberam críticas de alguns autores (Kleiner, 2010; Cramer,
2012; Pasquinelli, 2012). Para eles, ao resguardar o princípio da propriedade
intelectual com a diretriz de “alguns direitos reservados”, essas licenças
focam mais em garantir direitos a quem produz do que em estabelecer critérios
com vistas à geração e preservação da cultura como um bem comum.
Assim, o que em tese haveria de mais subversivo no
movimento, a luta contra o copyright
e a favor da mais ampla circulação da cultura, poderia se transformar num meio
termo customizável e mais palatável ao mercado:
What began as a movement for the abolition of intellectual property has become a movement of customizing owners’ licenses. Almost without notice, what was once a threatening movement of radicals, hackers and pirates is now the domain of reformists, revisionists, and apologists for capitalism. When capital is threatened, it co-opts its opposition. We have seen this scenario many times throughout history.... The real effect of Creative Commons is to narrow political contestation within the sphere of the already permissible (Kleiner, 2010, p. 35)[10].
Outro ponto crítico enfatizado por Kleiner é que, ao não
diferenciar os atores que estão em cena na produção cultural digital, e a luta
de classes inerente a isso, essa visão acaba favorecendo um novo tipo de
exploração do trabalho adaptado à era das redes de comunicação. Desse modo, a
produção compartilhada livremente no meio digital seria usada como
matéria-prima por grandes empresas, sem nenhuma remuneração para seus
criadores.
Desse ponto de vista, o movimento da Cultura Livre falha
ao não perceber as diferenças implícitas entre a produção de software livre, que o inspirou, e a
produção cultural. Enquanto a primeira garante seu sucesso comercial e a
sobrevivência de seus produtores, pois é possível liberar um código e vender
serviços sobre ele paralelamente, no caso da produção de obras artísticas, não
existe serviço agregado a ser oferecido que compense o seu custo. Ao mesmo
tempo em que defende o fim do copyright
e a constituição da cultura como um patrimônio comum, o autor alerta para a
necessidade de se garantir que artistas sejam remunerados por suas criações,
especialmente se outros atores estiverem fazendo uso comercial de suas obras
sem oferecer nenhuma contrapartida.
Para equacionar esse problema, Kleiner propõe o conceito
de licenças copyfarleft, que têm
regras diferentes para classes diferentes: uma para aquelas que estão inseridas
na produção coletiva e outra para quem empregue trabalho assalariado em sua
produção. Aos trabalhadores seria permitido o uso, inclusive comercial, do bem
comum, mas não àqueles que explorem o trabalho assalariado, que seriam
obrigados a negociar o acesso. Assim, de acordo com sua proposta, seria
possível preservar um estoque comum de bens culturais disponível a produtores
independentes, mas ao mesmo tempo impedir sua expropriação por agentes
privados.
Na mesma linha crítica, Pasquinellli (2012) lembra que
Lessig, em seu livro Cultura Livre, relaciona as licenças Creative Commons com a tradição libertária anglo-americana, na qual
liberdade de expressão caminha ao lado da liberdade de mercado. O autor
italiano ressalta que o espaço dinâmico e autogerador criado pelo livre
compartilhamento e recombinação de obras digitais favorece o mercado, que usa
essa produção online abundante e
gratuita para se expandir e criar novos monopólios e rentismos, em detrimento
da constituição da cultura como um bem comum.
Para esse autor, o pensamento corrente sobre a produção
no contexto das redes carece de uma reflexão mais profunda sobre os
antagonismos inerentes ao capitalismo. Ele ressalta um ponto cego na cultura
digital: o fato de não considerar o trabalho off-line que sustenta o mundo on-line,
e suas implicações em diversas dimensões: sociais, econômicas, políticas e até
mesmo ecológicas.
Como se vê, as duas críticas apontam para o viés liberal
da Cultura Livre que se desenvolveu a partir dos Estados Unidos e enfatizam a
importância de se proteger a produção da exploração exógena, com ênfase na
construção de um patrimônio comum. Essas pontuações são estratégicas para se
pensar as especificidades do movimento no hemisfério sul, onde a distribuição
desigual de recursos materiais e imateriais é uma constante. Especialmente, a
noção de comum autônomo, como um estoque comum que deve ser dinamicamente
construído e defendido, pode nos ajudar a refletir sobre algumas iniciativas
independentes da América Latina que participaram do Encontro Cultura Livre do
Sul, e podem ser analisadas sob a luz da noção de produção cultural comunitária
a ser esmiuçada a seguir.
Algumas aproximações com o conceito de produção cultural
comunitária
A partir das temáticas
escolhidas para serem debatidos no encontro, das práticas dos coletivos
participantes e da discussão em torno da construção de comuns na comunicação e
cultura, entendemos que a articulação em torno do Encontro de Cultura Livre do
Sul pode ser analisada à luz do conceito de produção cultural comunitária.
O
processo de construção de produtos e experiências culturais não se dá
isoladamente a partir somente da habilidade individual dos artistas. Ela se dá
também a partir do imaginário construído coletivamente nos territórios, pela memória,
vivências e contingências que a própria distribuição dos recursos nos
territórios impõe. Portanto, a dimensão do comum está presente na produção
cultural, pois precisa ser entendida para que se possa compreender o contexto
em que a experiência cultural se concretiza.
O
contexto do sul global também ajuda a relacionar o conceito de produção
cultural comunitária ao nosso objeto de estudo. , já que as contingências
geradas pela distribuição desigual dos bens e das próprias oportunidades de
difusão de narrativas marcam a experiência da propagação de conhecimentos
comuns nesta parte do planeta. Portanto, cabe demarcar a concepção de produção
cultural comunitária como
tipo de produção cultural realizado em contextos populares, geralmente em contingência material, com fortes laços de solidariedade entre indivíduos com objetivos comuns, que podem ter vínculo local ou transcender o aspecto geográfico, ao criar redes de apoio mútuo e tecnologias sociais para fazer perdurar suas narrativas (Jesus & Luna, 2017, pp. 61-62)
Ressaltamos ainda que a produção cultural comunitária
tenta se diferenciar das culturas de massa e das culturas de nicho, que
compartilham a característica da intermediação entre produtores e consumidores
de conhecimento e cultura. Esta mediação não se dá apenas nas dimensões da
forma e conteúdo, mas é especialmente problemática, na dimensão da circulação
da mensagem. Munidos do capital econômico, estes intermediadores (em geral,
gravadoras, editoras, marchands)
passam a pautar a circulação da informação na sociedade, uma vez que realiza a
curadoria do que é ou não veiculado.
Seria muito pragmatismo, entretanto, fazer uma relação
dual entre processos que são intermediados e os que não são, dadas as várias
maneiras de mediação e da relação dialética de aproximação e distanciamento que
as culturas populares e comunitárias negociam com diversas formas de mediação.
A produção cultural comunitária se entranha nas diversas maneiras de propagar
seus produtos e narrativas, condições difusas que a própria distribuição
material desigual na sociedade ocasiona.
Portanto, a produção cultural comunitária, realizada em
contextos específicos, a partir do sul global, em relações de
institucionalidade difusa, ora com relações diretas com o poder público e o
mercado, ora estabelecendo redes de apoio mútuo e criando tecnologias sociais
para a resolução de problemas locais, parece ser o escopo social com o qual a
articulação em torno do Encontro de Cultura Livre do Sul está inserido. Isso se
manifesta a partir das vivências em espaços alternativos de produção (Hackerspaces, hacklabs, telecentros), na preocupação com a produção livre, acervo
e memória, ou ainda como formação de pauta de reivindicações de políticas
públicas.
Encontro de Cultura Livre do Sul Global
O Encontro de Cultura
Livre do Sul foi resultado de uma construção coletiva de anos antes de alguns
dos coletivos organizadores. Podemos recuperar a história dessa articulação em
dois momentos principais: o II Congreso Internacional Cultura Libre[11], realizado
nos dias 30 e 31 de maio de 2013 em Quito, no Equador; e o 1º Congresso Online
de Gestão Cultural[12] (#GCultural2016), ocorrido entre setembro
e outubro de 2016 em diversos locais simultâneos, de forma on-line. Foram dois
eventos em que coletivos atuantes no movimento da Cultura Livre na América
Latina puderam se conhecer, trocar conhecimentos e, a partir daí, manterem
contato e intercâmbios de ideias para propor ações conjuntas, entre elas o
Encontro de Cultura Livre do Sul já mencionado.
O II
Congresso Internacional de Cultura Livre foi realizado por uma série de
entidades da América Latina, liderados pela FLACSO (Faculdade Latino-americana
de Ciências Sociais) do Equador, Radialistas Apasionados[13] e pela
Unesco de Quito, com apoio do Ministério da Cultura do Equador. A programação trouxe debates, oficinas e
conferências sobre cultura livre, gestão cultural, educação, recursos
educacionais abertos e digitalização de recursos de museus e bibliotecas,
contando com a participação de coletivos, pessoas e organizações de diversos
países da América Latina e Espanha. O objetivo do evento foi criar
un espacio de debate e intercambio de experiencias sobre el acceso universal al conocimiento, la creación artística y cultural, la gestión de la cultura, el uso de las tecnologías abiertas y libres, la producción colectiva, el acceso abierto a producciones científicas, el uso de licencias alternativas, los nuevos modelos pedagógicos y las ventajas para la ciudadanía (Baixacultura, 2013).
A
partir do congresso o espaço de debate e intercâmbio de experiências prosseguiu
na internet, em trocas de e-mails, grupos de redes sociais e em chats. Três anos depois, após a
realização de campanhas ativistas coletivas em prol da cultura livre em alguns
dos países envolvidos e outras ações pontuais, uma parte dessa rede se reuniu
novamente para promover o segundo evento mencionado, o Congresso Online de
Gestão Cultural (#GCultural2016). A proposta então foi a realização de um
evento de debates sobre gestão cultural a partir dos princípios da cultura
livre compartilhado por todos os coletivos organizadores[14].
Como
um evento acadêmico presencial, primeiramente se fez uma chamada para
apresentação de resumos, depois houve uma seleção das propostas apresentadas e,
por fim, o debate entre os participantes. A diferença nesse caso foi que todo o
processo foi feito online, inclusive
a última parte, onde as pessoas debateram seus trabalhos - previamente
publicados em sítios web dos
coletivos organizadores do evento e coordenadores das mesas - a partir de
comentários nas páginas, conversas em grupos de chat do software de mensagens
instantâneas Telegram e, por fim, em
videoconferências ao vivo[15].
A
metodologia do Congresso de Gestão Cultural Online serviu de teste para a que
seria utilizada no Encontro de Cultura Livre do Sul em 2018. Diversas reuniões
prévias online (através da plataforma facilitadora de conferências Jitsi[16],
de código aberto) foram realizadas para moldar o formato do encontro; a
sistematização de cada reunião (em pads
de plataformas diversas, entre elas o Riseup
Pad e o Corais[17]) serviram
como documento para facilitar a próxima. Diferente do Congresso #GCultural2016,
a proposta aqui era a de organização de mesas de discussão on-line com
participantes escolhidos a partir de uma curadoria de cada um dos cinco
coordenadores de mesa; cada uma delas seria transmitida ao vivo, a partir das
plataformas Jitsi e Google Hangouts[18],
sincronizadas para transmissão nos canais do YouTube de Ártica Online/URU[19] e do BaixaCultura/BRA[20],
organizadores do evento e coordenadores de mesa junto com Rede de Produtoras
Culturais Colaborativas/BRA[21], Ediciones de La Terraza/ARG[22], Nodo Común/ESP[23] e Em
Rede/BRA[24].
A
partir das reuniões prévias de preparação e da divulgação do evento nas redes
sociais e nos mailing de cada
coletivo, o Encontro de Cultura Livre do Sul foi então realizado nos dias 21,
22 e 23 de novembro de 2018. Nesses dias, o debate ocorreu com o auxílio dos
textos provocativos produzidos pelos coordenadores das mesas, publicados em
suas respectivas páginas webs, e
também na plataforma Investigación
Social.Net[25]
desenvolvida pelo Nodo Común. O debate principal, porém, foi centrado em seis
mesas transmitidas ao vivo por sistemas de videoconferência, tendo por tema
geral as perspectivas da comunicação e da cultura livre a partir do Sul global.
A seguir, apresentamos um resumo de cada mesa:
· Mesa 1: Políticas públicas e reformas legais[26]
O movimento da cultura
livre nasceu em resposta ao avanço das leis de propriedade intelectual em todo
o mundo. Desde então, ele questiona fortemente o papel do Estado em colocar
barreiras e reprimir a livre circulação do conhecimento. Mas o movimento da
cultura livre também propõe marcos normativos e políticas públicas para
proteger os bens comuns, com o objetivo de socializar a produção e o acesso à
cultura. Nesta mesa falaremos sobre as lutas atuais na região: reformas do
direito autoral, leis de software livre e de repositórios institucionais
abertos, políticas de digitalização do patrimônio e de produção cultural livre,
e muitas outras propostas que vão desde a solução de problemas específicos até
a mudança radical do sistema.
· Mesa 2: Digitalização e acesso ao patrimônio cultural[27]
Esta mesa de trabalho
procura dar visibilidade às possibilidades de acesso às diversas manifestações
culturais, nos mais variados formatos, através de plataformas livres e que
consigam lograr o alcance do público-alvo interessado em cultura, bem como ser
uma ferramenta de livre acesso para o público em geral. Na ocasião pretende-se
também incluir a relação desses produtos com as licenças livres disponíveis e
como reverberar os conteúdos e maneiras de salvaguardar o banco de dados para
acessos futuros.
· Mesa 3: Laboratórios, hackerspaces e outros espaços de
comunidades locais[28]
Nas últimas décadas
foram criados vários tipos de espaços comunitários, como laboratórios cidadãos
e hackerspaces, por todo o planeta e também no sul global. Com diferentes formatos
e objetivos, seus participantes em geral compartilham os valores da produção
colaborativa e do uso de tecnologias livres. Inseridos em diferentes contextos,
mais carentes ou mais abundantes, esses espaços têm sido pólos irradiadores dos
valores do conhecimento livre e da cultura livre. Mas como tem sido essa
experiência? Quais suas potencialidades, limites e desafios? Essas são algumas
das questões que esta mesa pretende abordar.
· Mesa 4: Redes internacionais: como nos inserimos em um
movimento global?[29]
Para fazer e propagar a
cultura livre, precisamos colaborar e tecer redes. Se somos um movimento que é
contra o status quo capitalista patriarcal, de que forma podemos nos unir e
tentar pequenos “hackeamentos” nesse sistema? Quem são nossos parceiros institucionais
ao redor do mundo e, principalmente, no sul global? quais as principais redes
que lutam no dia a dia pela cultura livre e o conhecimento aberto? Como fazemos
para juntarmos forças e cuidarmos de nossos trabalhos, esforços e redes? Nesta
mesa discutiremos como a cultura livre se insere num movimento global, quais os
desafios para tecer e sustentar redes locais e globais e quem podemos contar
como parceiros, institucionais e pessoais, no para nossa atuação no sul global.
· Mesa 5: Produção cultural livre[30]
Cada vez mais projetos
culturais decidem apostar no paradigma da cultura livre e começam, por exemplo,
a usar licenças livres e casas culturais de trabalho comum, entre outras
metodologias colaborativas. um desenvolvimento conceitual muito elaborado,
enquanto outros projetos têm uma sensibilidade ligada à cultura livre, mas
desconhecem muitos detalhes importantes. A ideia desta mesa é mostrar diversas
experiências de diferentes disciplinas culturais, aproveitando para falar sobre
seus problemas relativos ao licenciamento livre, à propriedade intelectual, a
constituição de catálogos ou pesquisas regionais de projetos culturais e
coletivos culturais que trabalhem dentro do paradigma livre, entre outras
questões. Um eixo transversal é como os diferentes projetos preveem a
sustentabilidade.
· Mesa 6: Educação aberta e cultura[31]
Talvez uma das áreas
mais importantes em que a cultura livre é vital para o sul global seja a
educação, onde a necessidade de materiais educacionais acessíveis, adaptáveis e
reutilizáveis é um assunto urgente para uma educação verdadeiramente
democrática e equitativa. O movimento de educação aberta e recursos
educacionais abertos é, paradoxalmente, muito importante no norte, mas ainda
não tem apoio e recursos suficientes nos países do sul. Nesta mesa,
discutiremos as práticas educacionais abertas e as políticas que foram
promovidas e que devemos promover para apoiá-las, na perspectiva do sul global.
Mais
de 200 pessoas participaram de cada uma das seis mesas e mais a de abertura[32], somando
no total cerca de 1000 pessoas on-line de 14 países diferentes do continente.
Os debates trouxeram relatos das diferentes realidades encontradas na América
Latina; das formas de produzir e manter um sistema livre de gerenciamento de
acervos digitais a experiências de hackerspaces na América Central e no
interior do Brasil, passando por um panorama das reformas das leis de direito
autorais na América Latina, iniciativas de bibliotecas e projetos digitais
baseadas em tecnologias livres na educação e artistas e produtores culturais
que usam licenças livres para circular suas obras. Estes e outros vários
projetos apresentados ajudaram a perceber a cultura livre no sul global como um
mosaico de diferenças que tem alguns elos em comum; um deles é a popularização
das tecnologias livres precisar estar vinculada às comunidades populares como
forma de empoderamento das pessoas e diminuição das desigualdades dos países da
região. Outro ponto observado no encontro foi o de perceber a profunda
diversidade das experiências como fator aglutinante para a construção de uma
cultura livre que incorpore mais elementos das culturas originárias do
continente, tendo assim um importante elemento de oxigenação da cultura livre
enquanto movimento.
O
Encontro proporcionou ainda um lampejo de renovação no movimento da Cultura
Livre e também teve, como resultado, a escrita de um manifesto com as intenções
do coletivo organizador para os próximos anos e uma proposta de pensar a
cultura livre desde o sul global:
A discussão sobre a liberdade de usos e produção de tecnologias livres tem sido fundamental para a cultura livre desde o princípio, mas acreditamos que, no sul, temos a urgência maior de nos perguntar para quê e a quem servem nossas tecnologias livres. Não basta somente discutir se vamos usar ferramentas produzidas em softwares livres ou se vamos optar por licenças livres em nossas produções culturais: necessitamos pensar em tecnologias, ferramentas e processos livres que sejam usadas para dar espaço, autonomia e respeito aos menos favorecidos, financeira e tecnologicamente, de nossos continentes, e para diminuir as desigualdades sociais em nossos locais, desigualdades estas ainda mais visíveis no contexto de ascensão fascista global que vivemos nesse 2018. (Baixacultura, 2018)
Após o
evento, as organizações que articularam o encontro passaram então a planejar a
segunda edição, desta vez com pretensões de realizá-la também presencial, mas
sem esquecer a metodologia on-line na intenção de não abandonar o caráter
acessível e aberto que a transmissão proporciona. Movidos por este intuito, o
coletivo organizador foi contemplado pelo já citado programa Mozilla Open Leaders, promovido pela Mozilla Foundation, com a missão de
aprender e compartilhar ferramentas, oferecer orientações e ajudar no
desenvolvimento de projeto nos próximos anos.
Após
seis meses de mentoria e participação numa rede global de pessoas e projetos
ligados à comunidade Mozilla,
determinamos algumas metas e caminhos para os próximos anos, como descrito no
Manifesto de Cultura Livre do Sul Global já citado:
realizar encontros bianuais para nos juntarmos em defesa da cultura livre e dos bens comuns; criar e manter espaços online para fomentar o debate e os intercâmbios entre os diferentes projetos e atores da cultura livre do sul; alimentar e divulgar mais amplamente as plataformas para mapeamento e curadoria de iniciativas de cultura livre; propor formações contínuas em cultura livre, para relacionar as práticas e os conceitos com as pessoas e projetos do sul global; promover espaços seguros de inclusão e diversidade dentro dos debates da cultura livre, garantindo a igualdade de direitos[33] (Baixacultura, 2018);
Sabemos, no entanto, que está para além dos três dias de
Encontro de Cultura Livre do Sul Global, a construção de uma rede que articule
a produção cultural comunitária nesta região do planeta. Em torno do que foi
discutido na seção teórica, acreditamos que seja possível elencar as relações
do Encontro com a construção de comuns, com o compartilhamento de ferramentas
livres de produção e distribuição de artefatos culturais, com a articulação em
rede e com a produção cultural realizada “de baixo pra cima” com o protagonismo
de artistas periféricos em seus países e com relação à produção cultural no
mundo.
A
contribuição do Encontro para a construção de comuns foi o compartilhamento de
experiências de diversos países do Sul global, permitindo a identificação de
contingências e de objetivos e desejos em comum, aglutinando atores sociais
geograficamente distantes, mas em contextos sócio-culturais equivalentes. No
que concerne ao compartilhamento de ferramentas livres, o Encontro em si foi um
exercício de experimentá-las, como no caso do uso do Jitsi para reuniões e
conferências, e de compartilhar experiências de espaços, ferramentas e
plataformas livres, que podem ser reaplicadas em contextos semelhantes,
propiciando condições para a maior obtenção de autonomia por parte dos coletivos.
Na perspectiva da articulação em rede ela se faz importante para ampliar a
escala do que é feito nos países, tornando os produtos e processos mais
disseminados, entre os grupos. Enfim, a produção cultural comunitária, “de
baixo pra cima”, enquanto processo afirmativo e que oferece alternativas para
mercados estabelecidos de produção e difusão cultural, a partir da construção
dos comuns, condizente com o que apontamos no conceito de produção cultural
comunitária.
É no
bojo dessas categorias de análises que o Encontro de Cultura Livre do Sul
Global é parte de uma articulação que é processual, em que não se pretende que
o Encontro seja um fim em si mesmo, mas que aglutina processos, saberes e
ferramentas cujo a apropriação pode criar as condições para mitigar as
desigualdades entre os produtores de cultura do Norte e do Sul Global.
Considerações finais
Este artigo teve o
objetivo de propor uma reflexão teórico-metodológica para articulação em rede,
a partir da sistematização do Encontro de Cultura Livre do Sul Global, desde a
construção coletiva que ensejou o evento até a sua realização e perspectivas
futuras. A reflexão se deu em torno das noções de construção de comuns, cultura
livre e suas relações com a produção cultural comunitária. Neste sentido, cabe elencar
alguns aspectos abordados neste exercício reflexivo.
As redes colaborativas são ambiente propício para o
diálogo e reflexão que suscite a reflexão em torno de comuns inerentes aos
anseios por solidariedade, afetividade, memória e efetivação de vivências
culturais nos territórios. Somente o mapeamento dos anseios das comunidades
locais é que se pode identificar as necessidades comuns de expressão e ação
cultural.
Viabilizar essas ações a partir do sul global, onde se
encontram países dependentes na divisão internacional do trabalho, é um desafio
que o compartilhamento de conhecimentos pode ajudar a mitigar. Por isso a
importância de ferramentas livres que não criem entraves para a livre
circulação de pensamento de habilidades que possam atender as demandas dos
coletivos culturais contemporâneos como gestão, acervo e comunicação, que
tendem a facilitar não só a produção-circulação-consumo de artefatos culturais,
mas também o senso de coletividade e organização.
A efetivação destes aspectos podem criar as condições
para a apropriação sociotécnica e a solidariedade, suscitando uma produção
cultural comunitária que possa envolver diversos setores da sociedade, como o
Estado, empresariado local, artistas locais, instituições de ensino, em um
movimento profícuo para experiências culturais vivenciadas “de baixo para
cima”, a partir das demandas locais.
A atuação em redes de
circuitos curtos, redes regionais e redes das redes avançando nas escalas pode
aumentar o escopo da produção cultural comunitária e incentivar a criação de
metodologias, tecnologias e experiências adequadas às demandas da
contemporaneidade e protagonizada pelos sujeitos sociais de cada território.
Nesse sentido, a produção cultural comunitária em rede propõe ações que
incorporam as demandas do manifesto produzido a partir do Encontro de Cultura
Livre do Sul de questionar para quê e a quem servem nossas tecnologias livres,
bem como o de que o conhecimento produzido a partir destas experiências tenha
também por foco diminuir as desigualdades sociais em nossas regiões.
Concluímos que investigar a relação com mercados de
nicho, mercados mainstream e a
inserção contínua de outros agentes, além dos produtores de cultura em si, como
o Estado ou mesmo as empresas locais, é um desafio no qual o conceito de
produção cultural comunitária pode ser uma ferramenta teórico-metodológica que
auxilie em investigações futuras, pois a complexidade do tema urge por cada vez
mais análises em torno de seus variados aspectos.
Nesse sentido, o movimento Cultura Livre no Sul Global,
em correlação com a produção cultural comunitária, se apresenta como uma
alternativa de repensar a construção de bens comuns da cultura a partir das
diferenças e peculiaridades do Sul Global, região e conceito que engloba países
em que questões como o combate à desigualdade de acesso à informação e cultura
é fundamental. Ao proporcionar um debate aberto sobre cultura livre a partir de
diversas perspectivas e pessoas da região e realizar ações nos territórios, o
primeiro Encontro de Cultura Livre do Sul e as articulações que decorrem dele
são uma pequena tentativa de combate a essas desigualdades e de unir os bens
imateriais com a matéria, às máquinas e aos corpos que o produzem, desfazendo a
concepção das tecnologias livres como neutras e as politizando em prol da
construção dos bens comuns.
Referências
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[1] Doutora em Ciências da
Comunicação (Universidade de São Paulo, Brasil). https://orcid.org/ 0000-0003-0828-2041
[2] Doutor em Ciências da Comunicação (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Brasil)
https://orcid.org/0000-0003-2677-1017
[3] Doutorando em Geografia (Universidade Federal de Pernambuco, Brasil). https://orcid.org/0000-0002-9274-3025
[4] Mozilla
Open Leaders é um programa da Fundação Mozilla que oferece mentoria e
assessoramento a projetos do mundo todo que buscam construir espaços abertos na
internet para discussão e ação coletivas. SIte: https://foundation.mozilla.org/en/opportunity/mozilla-open-leaders/
[5] Surgida a partir dos anos 1960 nos Estados Unidos, a cultura
hacker é uma subcultura que preconiza o conhecimento
livre e a produção colaborativa, valoriza a liberdade, a criatividade e a
autonomia. Abrange, entre outras iniciativas, o movimento software livre. Para
um aprofundamento no tema, conferir Levy (2001) e Gradin (2004).
[6] Os pontos de cultura foram parte de um projeto mais
abrangente, implementado pelo ministério da cultura no Brasil, durante a década
de 2000, como parte do programa
Cultura Viva. O programa instituiu como pontos de cultura instituições que
promoviam ações culturais a pelo menos três anos em um mesmo território, a
partir de então recebia fomento para continuar suas atividades.
[7] A ultima edição foi realizada em novembro de 2019 na Costa
Rica. Para mais informações: https://www.segib.org/el-6o-laboratorio-de-innovacion-ciudadana-de-iberoamerica-concluye-con-10-proyectos-innovadores-a-favor-del-medio-ambiente/
[8] Por suas
pesquisas com os comuns, Ostrom ganhou o prêmio Nobel de Economia em 2009, a
primeira mulher a receber este prêmio. Para mais informações: http://www.elinorostrom.com/
[9] Tradução
dos autores: “1) permite não só o consumo passivo e pessoal, mas o uso
produtivo do estoque comum – incluindo uso comercial por trabalhadores
individuais; 2) questiona o papel e a cumplicidade
dos commons na economia global e
estabelece o estoque de commons fora
da exploração de grandes empresas; 3) está consciente da assimetria entre commons materiais e imateriais e o
impacto da acumulação imaterial sobre a produção material (por exemplo IBM
utilizando Linux); 4) considera os commons
como um espaço híbrido que deve ser dinamicamente construído e defendido”.
[10] Tradução
dos autores: “O que começou como um movimento pela abolição da propriedade
intelectual se tornou um movimento de personalização das licenças dos
proprietários. Quase sem aviso prévio, o que antes era um movimento ameaçador
de radicais, hackers e piratas agora
é domínio de reformistas, revisionistas e apologistas do capitalismo. Quando o
capital é ameaçado, ele coopta sua oposição. Vimos esse cenário muitas vezes ao
longo da história.... O efeito real do Creative Commons é restringir a
contestação política dentro da esfera do já permitido.”
[11] Mais informações em: http://baixacultura.org/a-cultura-livre-em-debate-no-equador/
[12] Mais informações em: http://baixacultura.org/congresso-gcultural2016-encerramento/
[13]
Radalistas Apasionados y Apasionadas é uma ONG sem fins lucrativos com sede em
Quito, Equador, que tem por objetivo contribuir para a democratização das
comunicações, especialmente o rádio. Site: https://radialistas.net/
[14] Artica
Centro Cultural 2.0, Gestión Cultural (Uruguay), Comunicación Abierta (Bolívia),
Aforo Gestión Cultural (México), Comandante Tom
(Espanha) e BaixaCultura (Brasil). Mais informações: http://baixacultura.org/construindo-o-primeiro-congresso-online-de-gestao-cultural/
[15] Para mais
detalhes das temáticas de cada uma das cinco mesas e dos procedimentos
utilzados, ver http://baixacultura.org/construindo-o-primeiro-congresso-online-de-gestao-cultural/
[16] Site: https://meet.jit.si
[18] A discussão entre plataformas livres e
proprietárias é sensível à própria questão da cultura livre, sobretudo no
contexto do Sul Global. As opções por fazê-las via plataforma livre - Jitsi - e também uma plataforma
proprietária - Hangouts - foi tema de
discussão entre os organizadores, pois o Jitsi foi defendido justamente por ser
uma plataforma livre e o Hangouts por ter mais sincronia com o YouTube.
[19]
Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCaNZTjweA-mrKc9jzQ6vCFA
[20] Disponível em: https://www.youtube.com/user/BaixaCultura
[21] Website em: https://colaborativas.net/
[22] Website em: http://edicioneslaterraza.com.ar
[23] Website em: https://nodocomun.org/
[24] Website em: http://www.em-rede.com/site/
[25] Website: https://www.investigacionsocial.net/
[26] Gravada e
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eKp-G2rsLn4
[27] Gravada e
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B-P5v-YDi8k
[28] Gravada e
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pVpD_zzTCnM
[29] Gravada e
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9dn_eGOXnoY
[30] Gravada e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8DlJnR3LKzY
[31] Gravada e
disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VvUwN7Fu9Po
[32] Contou
com a participação dos coletivos organizadores das mesas e foi também
lançamento da edição especial da Revista Pillku, “Amantes de la libertad”.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7wXXe3HzKQY&feature=emb_title
[33] Acrescentamos, ainda, durante o Mozilla Open Leaders, mais três objetivos: fortalecer a
liberdade de expressão, de acesso à informação
e à criação de espaços democráticos de comunicação que garantam avanços nas
discussões sobre cultura livre e na construção democrática de políticas sobre o
tema.